quarta-feira, 27 de outubro de 2010

DIREITO E LEI NO ESTADO DEMOCRÁTICO

O presente artigo foi extraído da monografia, apresentada por mim, perante a Banca Examinadora do Curso de Pos Graduação em Direito Público, recebendo aprovação com conceito "muito bom". Na medida do possível, outros trechos e tópicos da monografia serão publicados, tratando de assunto palpitante no tocante às crises da democracia.
Há que fazer uma separação entre Direito e Lei, para melhor compreender o tema. O Direito, para alguns não é criado pelo Estado, que apenas “verifica os princípios que os usos e costumes consagram, para traduzi-los em normas escritas e dar-lhes eficácia extrínseca mediante sanção coercitiva” .

De acordo com essa teoria, o Direito é anterior à lei. O legislador, interpretando o anseio da sociedade, apenas certifica e expressa em forma escrita o direito requerido pelo povo, mas não um obreiro que faz lei.

Com razão escreveu Pontes de Miranda:

O Estado é um meio perfectível, não exclusivo, de revelação de normas jurídicas. Fora do Estado, existem outros centros de determinação jurídica, relativamente autônomos: as igrejas, as autarquias e entidades paraestatais, os clubes e associações, os grupos menores em geral, revestidos de capacidade de autodeterminação, os quais, sem prejuízo da predominância do poder estatal, atuam como fontes geradoras de normas jurídicas.

Por mais primitiva que seja a sociedade ou por mais desorganizada, nela há de encontrar-se o direito: onde há espaço vital, há direito.

A propósito, o direito existe até mesmo nas organizações criminosas, pois nesse espaço existente nas grandes fendas sociais, onde o Estado é omisso, vigoram os valores éticos, sociais, culturais, etc., diversos daqueles convencionalmente adotados pelo Estado e os segmentos sociais. Nesses guetos encravados em favelas e nas periferias das cidades, o padrão de comportamento é outro. O que interessa para as pessoas que vivem nesses locais, não é a política de Estado e sim a política do sistema paralelo ao qual está agregado.

Para essas pessoas, a atuação do Estado, além de deficiente e morosa, padece de legitimidade, na medida em que as autoridades competentes não primam pelo bom exemplo na gestão do dinheiro público. Os escândalos veiculados expõem as vísceras de um Poder corrupto, ilegítimo e desonesto. Nessas condições é fácil perceber o poder de convencimento das quadrilhas organizadas que amparam seus adeptos, com mais eficiência e rapidez, inclusive punindo com eficácia os infratores e socorrendo os membros, em suas necessidades.

A entrevista de um líder de facção criminosa concedida ao Jornal O Globo, expõe com clareza o início da deformação do Estado Brasileiro e a ameaça à própria Democracia institucional. Na defesa de um Estado humanitário, pautado nos ideais de liberdade e da dignidade humana, produziu o efeito contrário. A história parece repetir a mesma situação vivida pelo mundo, logo após a Primeira Guerra Mundial.

Naquele período, a excessiva liberdade garantida pelas leis do Estado foi decisiva para o surgimento de líderes fortes e carismáticos, que sob a figura de verdadeiros “salvadores da pátria” dominaram o povo. Hoje, vivenciamos sob a égide das liberdades públicas, o fortalecimento do poder de fogo das organizações antagônicas às leis estatais, que se utilizam da própria estrutura do Estado, para ganharem dinheiro, notoriedade e poder.

Ninguém pode ignorar a existência dessas organizações encravadas na própria estrutura do Estado que funcionam como um Estado paralelo. Equipadas com armas pesadas e dotadas de uma rede moderna de comunicações, essas organizações fazem das favelas e das periferias das grandes cidades, um verdadeiro Quartel. Com uma lei própria que sob a ótica dos seus adeptos é justa, possuem tribunais que apuram, julgam e executam com celeridade, aqueles que agem contra o sistema, enquanto que o Estado se arrasta na sua própria “incompetência burocrática”.

Os próprios elementos da sociedade civil, frustrados com a ineficiência da segurança pública oficial, apelam para os “serviços” prestados por essas organizações, numa demonstração inequívoca que o Estado atual não detém o monopólio do Direito.

Um dado claro que o Estado está perdendo o seu espaço é a proliferação dos chamados juízos arbitrais. Empresários estão recorrendo a esse método por não apostar mais na Justiça deste País. Preferem solucionar suas questões em mesa de negociações a submetê-las ao Tribunal. A Justiça está ficando reservada apenas às camadas mais pobres que se contentam com advogados dativos que nunca se esforçam para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, vez que as causas terminam em conciliações e num verdadeiro mercado de “cestas básicas”, “penas alternativas”, etc., sem a preocupação com a autêntica justiça. Nesse patamar, criou-se uma situação em que o Estado finge que garante o devido processo legal e o advogado finge que defende, avalizando as transações, em troca de baixa remuneração. Isso é o subproduto do Estado de Direito.

Tem razão o entrevistado ao deixar claro que o Estado não só no Brasil, mas em todo o mundo sofre da crise de legitimidade. As organizações têm dinheiro e corrompem os agentes. O Estado, impotente, nada faz para evitar isso. Quem tem dinheiro manda, passa por cima da lei. Isso é a crise que solapa a credibilidade do Estado Democrático de Direito.

Já vimos como o Estado pode se extinguir. Uma das causas é a abdicação de exercer a soberania, ou da degeneração moral das instituições, como fontes irradiadoras do direito. Não seria demais se pensar que assim como o Estado nasce, floresce e morre, poderíamos estar diante de um fenômeno em que o Estado já exaurido de sua capacidade de tutelar todos os direitos sociais, cede espaço para que esses direitos passem a ser produzidos por meio de outras fontes, fora do Estado, como assinalou Pontes de Miranda. É a chamada força contrária exercida por grupos dentro do próprio Estado, contra as forças oficiais, chegando a ponto de suplantá-las para impor uma nova ordem social. A esse respeito, basta atentar para o que está ocorrendo nos morros do Rio de Janeiro, onde a atuação das milícias, caracterizadas por uma estrutura organizacional idêntica a do Estado e até com mais eficácia e credibilidade, impõe uma nova regra social do crime organizado.


7 A CRISE DO ESTADO COMO GARANTIDOR DO DIREITO.

O Estado existe para proporcionar ao indivíduo a proteção, a segurança e a garantia dos direitos estabelecidos nas leis. Ocorre que o Estado moderno vem sofrendo transformação diante do excesso de direitos sociais conquistados a partir da 2ª Guerra Mundial, de tal magnitude que as demandas ampliaram a tal ponto, que o Estado tornou-se incapaz de atendê-las, implicando-se na descrença popular dos postulados democráticos, principalmente diante da imposição de pesada carga tributária que inibe as iniciativas empreendedoras do comércio, gerando mais desemprego e misérias. A frustração do indivíduo frente à garantia de seus direitos causa abalo na legitimidade do poder político, base que sustenta o Estado Democrático de Direito.

O desinteresse do cidadão pela gestão pública propicia a desintegração do Estado com a sociedade. O Estado existe para servir a sociedade e a sociedade serve para fiscalizar a atuação do Estado. Quando isso não acontece, os políticos se apossam do poder para obter vantagens pessoais. Essa visão distorcida do interesse público misturado com o interesse privado cria um ambiente em que só pessoas mal intencionadas se interessem pela política e as pessoas mais honestas dela se afastam.

Para compensar a sociedade pobre e desempregada, os detentores do Poder criam mais direitos sociais, sobrecarregando o Estado com mais encargos que exigem cada vez mais recursos. De onde esses recursos serão obtidos? Através de tributação, cujo produto da arrecadação, ao invés de ser aplicado no desenvolvimento da sociedade, como um todo, é destinado, exclusivamente, a massa popular que aumenta cada vez mais, deixando de ser empreendedora, à espera do assistencialismo estatal. Essa realidade mantém a superestrutura do poder político e o poder político, por sua vez, mantém a infraestrutura social.

A propósito, como bem lembrado pelo Prof. Wilson Steinmetz

Neste inicio de século XXI, a crise e a reforma do Estado, bem como a necessidade e as possibilidades de um novo modelo de Estado são temas que ainda atraem o interesse dos intelectuais (da academia e fora dela) e ocupam posição de destaque na agenda política, nacional e internacional. Assim tem sido desde o início da crise do Estado do Bem-Estar (Welfare State) europeu, na década de 70, e da crise do Estado Desenvolvimentista latino americano, na década de 80, do século XX.

Adverte o eminente mestre que esses temas são a função estratégica do Estado, a crise do tipo Estado-nação, a democracia ante a globalização e a posição preferencial (preferente reforçada) dos direitos fundamentais no Estado Constitucional contemporâneo.

Nesta conjuntura mundial, o Estado do Bem-Estar, principalmente dos países europeus, na década de 70, e mais recentemente, o Estado Desenvolvimentista dos países latino-americanos, entram em crise. É que as pessoas moram no Estado, onde trabalham e geram as riquezas. Enquanto a legitimidade do poder se limita no âmbito de suas fronteiras, as regras que ditam o processo econômico não conhecem esses limites, atuando de maneira transnacional. Para resolver essa questão, os governos concedem mais incentivos fiscais a empresas e estas exploram suas atividades econômicas e o lucro obtido, ao invés de ser reinvestido no país, é depositado em paraísos fiscais. Aproveitam da oportunidade que essa abertura lhe oferece, exploram o povo e levam o capital para outro lado da fronteira nacional, deixando apenas o déficit econômico interno e mais desempregos e misérias para o povo.

Essa situação é cíclica, pois onde o problema é resolvido, inicia-se outro mais grave ainda, porque as verdadeiras causas nunca são atacadas.

Para autores como Offe (1984) e Vacca (1991), a crise do Welfare state manifesta-se como crise fiscal, de legitimação e de governabilidade. A crise fiscal decorre da dificuldade de o Estado fazer frente ao aumento progressivo dos gastos públicos. Sobre o Estado há uma demanda crescente, incompatível com a evolução de suas receitas. À crise fiscal soma-se a de legitimação. Isso porque quem faz a filtragem política das demandas são os partidos políticos e as “organizações de interesse”. Para Vacca (1991, p.156), a crise de legitimação pode ser vista como “[...] crise de representação das classes trabalhadoras [...]”. “Os debaixo” já não se vêem representados adequadamente pelos partidos e sindicatos. Ainda segundo Vacca (1991, p. 157-158), “[...] os órgãos da administração pública e do Estado são ‘enfeudados’ pelos partidos [...] Estes estendem o seu domínio sobre os órgãos públicos e estatais, mas mostram-se cada vez mais incapazes de conferir unidade de objetivo e funcionalidade dos órgãos do Estado”. Assim, a crise fiscal que fragiliza o Estado também respinga nessas instituições responsáveis pela produção de legitimidade. A conseqüência é a crise de governabilidade.

Sobre a crise fiscal do Estado, é oportuna observação de Bresser Pereira

“A crise dos anos 80 e 90 do Estado (brasileiro e latino-americano), é uma crise fiscal do Estado, é uma crise do modo de intervenção do Estado Social, é uma crise de forma burocrática e ineficiente de administrar o Estado que se tornou grande demais para poder ser gerido nos termos da denominação ‘nacional-legal’ analisada por Weber”. Para Bresser Pereira (1996, p.15), a crise fiscal caracteriza-se pela perda do crédito público. Pelo fato de que a elevada dívida pública, combinada com as altas taxas de inflação, déficit público crônico, altas taxas de juros internas, taxas declinantes de crescimento, torna ela própria explosivas as expectativas com relação ao seu crescimento.”

O Estado Social derivado do Estado Neoliberal, considera o Estado uma Previdência, um Estado Segurador. O indivíduo agora não pretende apenas a liberdade que já fora conquistada e garantida. O indivíduo deseja também, segurança, paz e acima de tudo, amparo social. Mas isto custa caro ao Estado, principalmente para Estado com Democracia incipiente, burocrático, ineficiente e corrupto.

A crise do Estado Social resulta dos vícios herdados do período neoliberal. A evolução para o Estado Social deu-se de forma incompleta, trazendo consigo velhos costumes do período anterior, incompatíveis com o atual. Para a adoção do Estado Social, as nações deveriam, preliminarmente, instrumentalizar-se adequadamente, para atender as novas demandas
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