terça-feira, 2 de agosto de 2011

O PERIGO DO POSITIVISMO JURÍDICO CONTRA A ORDEM DEMOCRÁTICA







O estudo do Direito Constitucional confunde-se com os movimentos sociais que aspiram o bem estar e a felicidade. Um dos maiores constitucionalista da atualidade, Peter Haberle, respeitado e estudado em quase todos os países democratizados, nos oferece uma gama de novidades para reflexão e debates, abrindo o círculo de interpretação da lei magna, a que antes só tinham acesso poucas pessoas.

Pela nova concepção de Haberle, “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecesse um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição”.

Interessante notar que Peter Haberle por ser alemão, cresceu numa sociedade devastada pelo regime nazista, sentiu na pele os efeitos de um Estado totalitário, onde o individuo não tinha espaço e nem liberdade. Tudo controlado, concebia-se a idéia de Estado, como sendo um instrumento de dominação e opressão. A lei era interpretada e aplicada em função dessa idéia de Estado.

Em princípio, o povo alemão humilhado e abatido pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial, apostava no regime nazista, como o único meio de resgatar o brio e a pujança de uma nação extraordinária. Hitler soube capitalizar bem essas aspirações e em nome de uma pseudo retomada do progresso e do desenvolvimento do país devastado pela guerra, e bem assim, prometendo resgatar a glória e o domínio da nação alemã, transformou-se um rolo compressor, passando por cima do Congresso, das entidades civis, tornando-se o comandante absoluto, sem freios e sem limites.

Ninguém ousava contrariá-lo, pois tudo era permitido em nome de uma salvação nacional. Para tanto, Hitler conseguiu emplacar um sistema jurídico e legal, envolvendo a estrutura do Poder Judiciário, do Ministério Público e de todos os órgãos estatais, em conformidade com a sua idéia de que era imprescindível a purificação de raça e a eliminação de todos aqueles que pudessem colocar em risco o seu plano em marcha.

Hitler atribuía o fracasso alemão na Primeira Guerra Mundial e a miséria causada pela crise financeira do País, a determinados grupos raciais, políticos e culturais, como judeus, ciganos, negros, comunistas, homossexuais, portadores de deficiências, idosos, enfermos, considerados como um pesado fardo para a Nação Alemã e obstáculos para o cresimento.

Ninguém pense que Hitler praticou todos aqueles horrores sozinhos e sem leis. Os seus atos tinham embasamento nas leis de Estado e o beneplácito do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos órgãos públicos, como Escolas, Igrejas, Hospitais, etc.

Hitler não era um ditador, na acepção verdadeira do termo. Ele era legalista e pragmático. Como conseguia aprovar pelo Congresso tudo o que desejava, tinha à sua disposição todo um sistema legal e jurídico, para instrumentalizar e executar as suas ações de governo, sempre avalizadas e aprovadas pelos Poderes de Estado.

Dentro desse contexto, uma criança ou adolescente que apresentassem dificuldades para aprendizagem na escola, os professores e supervisores de ensino eram obrigados por lei, a encaminhar a criança ou o jovem, a um órgão de controle social, no qual estavam lotados médicos, psiquiatras e outros profissionais os quais por sua vez, elaboravam um relatório com diagnóstico das dificuldades daquele aluno, pedindo providências que iam desde a esterilização até a eliminação, como medida de eugenia social.

É bom lembrar que para a aplicação dessas medidas, o Estado de Hitler se valia do Poder Judiciário e da Promotoria de Justiça. Esses órgãos estavam tão impregnados com a doutrina de Hitler e suas leis, que recebiam os processos de modo mecânico, simplesmente batiam um carimbo com os pareceres e logo em seguida, o juiz proferia a sentença, invariavelmente, condenando a pessoa a uma medida desumana.

As condenações nesse sentido eram tantas e repetidas, que o Poder Judiciário já possuía um modelo de decisão para todos os casos, só faltando preencher os dados da pessoa condenada. Há relato inclusive de juízes que atuaram nesses casos, que nem chegava analisar os autos, encarregando um funcionário qualquer para bater o carimbo que era rubricado apenas pelo juiz, numa verdadeira produção em série de sentenças judiciais.

Em pouco tempo, superlotavam os presídios de jovens negros, estudantes com dificuldades de aprendizagem, ciganos, judeus, idosos, homossexuais, aleijados, comunistas, ateus e críticos do governo, obrigando Hitler adotar a solução final, com a construção de campos de concentração, nos quais as pessoas eram amontoadas, morrendo de fome.

Mesmo assim, diante de tantas prisões, até os campos de concentração tornaram-se insuficientes, de sorte que o plano seguinte adotado pela equipe de Hitler foi o de execução dos presos.

A execução por meio de arma de fogo também não era suficiente, sendo adotado um novo modelo mais barato e eficiente de matar os presos: a execução em massa através de gás. Era um meio bastante útil, porque se gastava menos e ainda proporcionava certo beneficio aos executores e soldados, com o aproveitamento das vestimentas dos executados, porque todos eram despidos a pretexto de tomar banho de chuveiro coletivamente, mas na verdade, ao invés de sair água, eram gases letais que desciam pelos canos e inundavam os acampamentos, matando milhões de pessoas, entre crianças, jovens, adultos e idosos dos diversos segmentos sociais, considerados como um atraso ao desenvolvimento alemão.

Permite-se observar por esse quadro dantesco, que Hitler tinha plena autorização legal para impor o massacre. Ninguém em sã consciência poderia acusá-lo de crime, porque tudo era feito em nome de uma Alemanha melhor, com leis, regulamentos e organização, formalmente em ordem, aprovados pelo Parlamento alemão.

Atualmente é fácil perceber a insanidade de Hitler. Mas naquele momento vivido pela Alemanha, ele era aclamado como um herói que só estava resgatando a estima e a honra da nação.

Essa situação serviu de um divisor de águas no estudo do papel do Estado perante a sociedade. A principal fonte de direitos é o Estado. Mas o Estado em si mesmo é uma coisa abstrata. O que lhe dá concretude é a pessoa que age em seu nome. Como resultado da idéia de Thomas Hobbes segundo a qual a sociedade precisa de uma entidade forte, absoluta e soberana, capaz de debelar os conflitos sociais e manter a paz, proliferaram-se por décadas modelos de governo, concebidos na idéia de um Estado forte e sem limites que pudessem impor aos membros da sociedade regras implacáveis, ainda que violassem o direito natural da vida e da liberdade.

Em contra ponto com esse modelo de Estado totalitário e absoluto, o grande iluminista John Locke proclamou que o homem delega seus direitos ao Estado, mas não todos, reservando para si, o direito de ser feliz, o direito à liberdade, o direito à vida, o direito à segurança, cabendo ao Estado o dever de garanti-los. O modo de delegar esses direitos é através de representantes escolhidos democraticamente.

É como o cidadão dissesse: eu elejo você para ser meu representante no Parlamento delegando-lhe a competência de aprovar leis que me ajudem a ser feliz. Contudo, não lhe dou o direito de usurpar a minha liberdade, os meus direitos naturais inerentes a todo o ser humano e pré-existentes.

Nessa hipótese, somente na Democracia plena, permite-se essa sistemática. E mais ainda, numa democracia republicana, aquele Estado concebido a partir das idéias de Aristóteles, de que o Estado é um ente criado para servir o povo e não o contrário.

Nessa ordem de idéia, Peter Haberle entende que por muitos anos, a prerrogativa de interpretar a Constituição permaneceu vinculada a um círculo fechado concentrando-se primariamente na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados, do que resultou empobrecido o seu âmbito de investigação. Por isso, é chegada a hora de uma virada hermenêutica radical para que a interpretação constitucional - que a todos interessa e a todos diz respeito - seja levada a cabo pela e para a sociedade aberta e não apenas pelos operadores oficiais.

Essa posição se revela salutar, na medida em que no Regime Democrático, cabe ao povo, o principal interessado, acompanhar o processo de formação das leis e após a sua promulgação, o controle de sua interpretação e aplicação ao caso concreto, com o fim de impedir que se crie um positivismo jurídico estéril, que abra caminho ao puro pragmatismo judicial, que se afasta da verdadeira justiça reclamada pela sociedade.

Em nome da lei fria, praticaram-se barbaridades contra a humanidade. É preciso que a lei satisfaça os desejos de justiça e não se constitua em instrumento para que os órgãos do Estado, Poder Judiciário, Ministério Público, não sejam os únicos operadores do Direito com o monopólio para interpretação das leis.

Por isso, atualmente essas idéias de Peter Habarle já se fazem presentes na nossa Carta Republicana de 1988, consagradas na figura do “amicus curiae” e da ampliação dos legitimados para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade de Leis e de Atos Normativos, dentro do controle concentrado de constitucionalidade, sem falar no controle difuso e incidental de leis e de atos normativos.

Como se pode perceber, são avanços significativos na esfera do Poder Político, que encontrará limites intransponíveis nessas representações mais abrangentes da sociedade, para prevenir e reprimir o abuso do Poder do Estatal.

É preciso, antes de tudo, estar atento contra proliferação desenfreada de leis, sob variados pretextos, porque o Estado, dentro dessa perspectiva democrática e republicana, não pode ocupar o espaço pessoal, privativo e exclusivo da pessoa, sob pena de assim o fazendo, minar a liberdade individual e institucionalizando aos poucos um modelo concentrador e tirano de governo, encaminhando-se daqui a pouco, por ter que construir campos de concentração para abrigar tantos condenados pelas milhares de leis penais aprovadas recentemente, tudo em nome de uma suposta paz social, mas que na verdade, o que vemos, é o reflexo do descalabro da situação do sistema penitenciário.




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