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* MARIANO HIGINO DE MEIRA
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Proclama a Constituição Federal no
artigo 29, que o Município reger-se-á por
lei orgânica votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e
aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal que a promulgará,
atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do
respectivo Estado e os seguintes preceitos...”.
Do rol desses preceitos, destaque-se
o do inciso VIII, que garante a inviolabilidade dos Vereadores por suas
opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato e na circunscrição do
Município e do inciso IX que defere a competência para a organização das funções
legislativas e fiscalizadoras da Câmara Municipal (g.n.).
De igual forma, o artigo 30 confere
competência aos Municípios, para legislar sobre assuntos de interesse local e
suplementar à legislação federal e a estadual no que couber, além de outras
competências para a eficiência da gestão administrativa.
Como é fácil perceber, ao Município
foi conferida pela Magna Carta, autonomia para auto se organizar e dispor de
regramentos próprios, desde que obedecidas aos princípios simétricos
constitucionais.
Em sede de procedimento para
cassação de mandatários municipais, o tema ainda não é pacificado pela doutrina
e jurisprudência.
Algumas correntes doutrinárias e
jurisprudenciais entendem que com a vigência da Constituição Cidadão de 1988, a Lei 1.579/52 e o
Decreto-Lei 201/67, que regiam o processo de cassação de Prefeitos e Vereadores
por infração político-administrativa, foram derrogados.
Com efeito, o eminente jurista
ADILSON ABREU DALARI com muita lucidez e acerto, discorrendo sobre o
Decreto-Lei 201/67 leciona que durante os
tenebrosos anos do governo militar, os detentores do poder impingiram ao povo a
crença de que a virtude era monopólio das autoridades federais, ao passo que a
incompetência e a desonestidade grassavam apenas no campo municipal.
Nesta linha argumentativa, mister se
faz reconhecer, que o Decreto-Lei 201/67 nada mais é do que um entulho
autoritário que persiste nos dias atuais na contra-mão do constitucionalismo
presente. É uma norma de forte carranca punitiva e preconceituosa. Qualquer
bacharel em direito sabe um dos pressupostos da validade da lei é a
generalidade abstrata. Não é o que nota na referia lei, que casuisticamente
elege uma categoria de mandatários para receber a punição, por violação a
conceitos éticos, excluindo-se as demais.
Os nossos constituintes andaram bem
quando cuidaram de organizar os Poderes de Estado, fixando-se os princípios
federativos ......ao mesmo tempo em que lhes deferiu a competência para tratar
de assuntos de interesse local.
A meu ver, ao Município cabe a
competência para legislar sobre matéria de cunho ético-parlamentar e prever as
sanções aos seus mandatários, por ofensa ao decoro, sem prejuízo das sanções já
previstas na Constituição Federal, em cumprimento ao princípio simétrico da
Constituição.
A mesma norma aplicável à perda do
mandado de Deputado e Senador, deve ser reproduzida, respectivamente, na
Constituição nos Estados e na Lei Orgânica dos Municípios.
Nesta linha de raciocínio, na
questão relacionada à cassação do mandato parlamentar, na hipótese de conduta
considerada incompatível com o decoro, o Município deveria inserir em sua Lei Orgânica, a tipificação
de infração ético-parlamentar, em consonância com a média moral da comunidade
local.
Isto porque, a Constituição além de
garantir a autonomia para o ente federativo, deferiu-lhe, também, competência
para legislar, como já se disse acima, sobre assuntos de interesse local.
Neste aspecto, me parece que a
infração ético-parlamentar está mais ligada ao interesse local, posto que
sociologicamente conceitos ligados à moral e aos bons costumes sofrem mutações
nos aspectos espacial, cultural e geográfico. Desse modo, conduta considerada
ofensiva ao pudor em determinado município, pode não o ser em outro. Por
exemplo, o costume numa cidade praiana, onde é normal as pessoas trajarem-se
sumariamente, ao passo que numa cidade interiorana, tal conduta seria
inaceitável.
À luz desse entendimento, é fácil
perceber que o decoro é o resultado da moral média da população de cada
município. Neste aspecto é bom frisar que cada comunidade política deveria
legislar, atendendo ao peculiar sentimento médio do povo. Por isso, que a
Constituição acertou ao deixar a cargo de cada município neste particular, para
traçar as diretrizes de cassação, não sendo justo e nem razoável que em matéria
de infração ao decoro atribuído a parlamentar, a Lei Federal ou Estadual
viessem definir atos circunscritos ao sentimento ético da comunidade local,
interferindo indevidamente na potencial consciência ética do corpo social de
cada município.
Os nossos Tribunais Superiores
tendem encaminhar-se para esse entendimento, conforme se deduz do V. Acórdão da
Corte Paulista de Justiça, abaixo transcrito:
VEREADOR
– Procedimento de modo incompatível com a dignidade da Câmara e falta de decoro
parlamentar – Denúncia formulada por cidadão com fundamento no artigo 5º,
inciso I, do Decreto-Lei 201/67 – Inciso do procedimento administrativo
tendente à cassação do mandato de parlamentar – Impossibilidade – Lei Orgânica
Municipal que atribui não a iniciativa do processo de cassação a eleitores –
legislação municipal que ab-roga a federal neste pormenor – Competência
deferida ao Município pela Constituição Federal – Artigo 29, ‘caput’, 30,
inciso I, e 55, § 2º da Constituição Federal de 1988 – Vício de iniciativa que
determina a anulação do procedimento administrativo e da Resolução dele
decorrente – Poder Judiciário a quem somente incumbe o exame do processo de
cassação sob a ótica da legalidade – Mandado de Segurança concedida – Sentença
mantida – Recursos não providos. (Apelação Cível nº 181.712-5/0 –
Serrana/Ribeirão Preto – Relator Celso Bonilha – 28.01.04 – V.U.)
A partir da vigência da Constituição
Federal, vigora o princípio da legalidade em todos os atos administrativos e
negócios conforme preceito firmado no artigo 5º, II, que declara ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
O ato considerado incompatível com o
decoro parlamentar não é mais um tipo aberto. Deve estar expressamente
consignado no regimento interno da Casa Legislativa, por força do que dispõe o
artigo 55, § 1º
É incompatível com o decoro
parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das
prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de
vantagens indevidas (g.n.).
Pelo princípio da simetria
constitucional, os preceitos insertos na Constituição Federal são de
observância compulsória pela Constituição dos Estados, do Distrito Federal e
pela Lei Orgânica dos Municípios.
A propósito em julgamento de Mandado
de Segurança no STF, o Ministro Celso de Melo assim se manifestou:
Reconheço, ainda, tal como
relembrado pelo Ilustre Advogado EDUARDO FORTUNATO BIM, em seu já referido
trabalho, que, hoje, ao contrário do que sucedia sob a égide da Constituição de
1946, quando a tipicidade em torno da noção de decoro parlamentar era
extremamente aberta (art. 48, § 2º), o vigente ordenamento constitucional (art.
55, § 1º) ‘preceitua que o decoro parlamentar tem que estar definido no
regimento ou consistir em atos caracterizadores de abuso das prerrogativas
asseguradas aos parlamentares ou em percepção de vantagens indevidas, aquelas
que contrariam o direito. Sem a subsunção ao ato tido como incompatível com o
decoro parlamentar às definições constitucionais, ainda que indireta, no caso
da previsão regimental, impossível a cassação de qualquer parlamentar à luz do
inciso II do artigo 55 da CF/88. Existe, dessa forma, uma tipicidade
constitucional dos atos indecorosos perfeitamente controlável pelo Judiciário.
Para a instalação de uma Comissão Parlamentar
de Inquérito – CPI -, basta o requerimento de um terço dos seus membros. A
Assembléia Legislativa de São Paulo inseriu no seu regimento interno, a
exigência de se submeter o requerimento para instalação de CPI ao Plenário. O
assunto foi parar no STF, que assim decidiu:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 34, § 1º E 170, INCISO I, DO REGIMENTO INTERNO
DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. COMISSÃO PARLAMENTAR DE
INQUÉRITO. CRIAÇÃO. DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA.
REQUISITO QUE NÃO ENCONTRA RESPALDO NO TEXTO DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
SIMETRIA. OBSERVÂNCIA COMPULSÓRIA PELOS ESTADOS-MEMBROS. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 58,
§ 3º DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil assegura a um terço
dos membros da Câmara dos Deputados e a um terço dos membros do Senado Federal
a criação da comissão parlamentar de inquérito, deixando porém ao próprio parlamento
o seu destino. 2. A garantia assegurada a um terço dos membros da Câmara ou do
Senado estende-se aos membros das assembléias legislativas estaduais – garantia
das minorias. O modelo federal de criação e instauração das comissões
parlamentares de inquérito constitui matéria a ser compulsoriamente observada
pelas casas legislativas estaduais. 3. A garantia da instalação de CPI
independe de deliberação plenária, seja da Câmara, do Senado ou da Assembléia
Legislativa. Precedentes. 4. Não há razão para a submissão do requerimento de
constituição de CPI a qualquer órgão da Assembléia Legislativa. Os requisitos
indispensáveis à criação das comissões parlamentares de inquérito estão
dispostos, estritamente, no artigo 58 da CF/88. 5.Pedido julgado procedente para
declarar inconstitucionais o trecho “só será submetido à discussão e votação
decorridos 24 horas de sua apresentação, e constante do § 1º do artigo 34, e o
inciso I do artigo 170, ambos da Consolidação do Regimento Interno da
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo”. Relator Eros Grau – ADI
02272-01 PP-00127.
CPI investiga. CPI não pune. CPI não
cassa. CPI é um instrumento que coleta informações sobre fato determinado. Concluídas as diligências, que devem ser
realizadas dentro de um prazo razoável, nunca ultrapassando a legislatura na
qual foi instalada e no final, a comissão apresenta um relatório conclusivo com
a proposta de:
1.
Arquivamento, na hipótese de não ter sido apurado nenhum indício de
falta tipificada como contrária ao decoro parlamentar.
2. Remessa de peças do apurado, para
o Ministério Público ou à Autoridade Policial competente, no caso de haver
indício da prática de ilícitos penais.
3. Instalação de uma comissão
processante, caso tenham sido apurados fatos que possam ensejar a cassação por
falta de decoro parlamentar.
Assim, a meu ver, se os fatos
apurados configurarem-se em tese, ilícito penal, só cabe a comissão encaminhar
o procedimento à esfera competente do Poder Executivo, que tem a competência
constitucional de apurar crimes ou ao órgão do Ministério Público, se presentes
provas concretas, para o ajuizamento da ação penal.
De modo algum, o fato tipificado
como crime, pode servir de fundamento para a cassação, num julgamento
apriorístico pela Câmara. Quer me parecer que neste caso, falece competência ao
Poder Legislativo julgar o seu par, como se fosse um tribunal criminal. Se o
fato imputado ao parlamentar se circunscreve ao tipo penal, cabe aos órgãos
competentes do Estado processar e julgar.
Convém salientar que é expressamente
vedada pela nossa Constituição, a instituição de juízo ou tribunal de exceção,
como um dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Ademais, ninguém
poderá ser processado e nem sentenciado, senão pela autoridade competente. Tais
garantias assumem muito mais relevo, quando se trata de tirar de um mandatário
popular, o seu direito que lhe fora outorgado pelos cidadãos.
Desse modo, caso fosse possível
julgar e cassar o mandato do parlamentar, por prática de fato definido como
crime, toda vez que o parlamentar tivesse que comparecer à uma Delegacia de
Polícia qualquer, já seria motivo para dar início ao processo de cassação.
A Constituição expressamente
alinhavou os casos em que o parlamentar pode ter o seu mandato cassado. No que
se refere à conduta indecorosa a Constituição condiciona que as constituições estaduais
e as leis orgânicas municipais definam em seu texto, quais seriam essas
condutas. Mesmo porque, tais exigências fazem parte dos pressupostos do direito
ao contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Ora se o parlamentar está sendo acusado de algum crime, obviamente cabe ao
tribunal competente julgar e só depois da sentença transitada em julgado é que
o parlamentar perderá o mandato e assim mesmo, através do voto secreto e
maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político
representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
Por outro lado se está sendo julgado
por falta de decoro parlamentar, ele deve saber qual a conduta tipificada na
Lei. A própria Constituição assegura no artigo 5º, II, que ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É o
princípio da legalidade que legitima o funcionamento dos órgãos públicos. A não
submissão a esses princípios caracteriza-se em um dos piores golpes ao regime
democrático de direito consagrado na nossa Carta Magna.
Que o parlamentar seja julgado e
condenado, mas nos precisos termos fixados pela Lei. Não se pode permitir a
prerrogativa de quem quer que esteja investido de poder, como uma carta branca,
para fazer o que quer. Sob falsos argumentos de defender uma falsa moralidade
pública, quem sabe, é o início de um sistema absolutista de afastar do caminho
aqueles que perturbam as nossas pretensões. A obediência aos princípios
constituições não é privilégio é um dever de todos, comprometidos com esta nova
ordem institucional do nosso País.
Como a Constituição Federal irradia
as normas a serem observadas compulsoriamente pelas demais leis infraconstitucionais,
é fácil concluir, que um parlamentar só poderia nessas condições ser cassado,
após o trânsito em julgado da sentença criminal que o condenou e mesmo assim,
observados os requisitos do § 2º do artigo 55, da CF/88.
De outro modo, é bom que se diga que
é vedado o bis in idem, ou seja,
dupla condenação pelo mesmo fato.
Assim, a título de exemplo, caso um parlamentar
fosse cassado por falta de decoro, sob o argumento de ter cometido um ato
classificado como crime e ficasse com os direitos políticos suspensos por cinco
anos e passado esse período, fosse eleito para mais um mandato, poderia ser
novamente cassado, caso lhe sobreviesse sentença criminal transitada em julgado
sobre o mesmo fato ocorrido anteriormente, no qual teve seus direitos políticos
cassados, por força do que dispõe o artigo 55, VI da Constituição. Seria uma
aberração jurídica. Mas é isso que se desenha, com o entendimento de que um
parlamentar deve ser processado e julgado politicamente pela simples acusação
da prática de ato definido como crime.
Já no tocante à falta de decoro
parlamentar, penso que seria imprescindível a presença de rol taxativo de
condutas tipificadas como infração capaz de submeter o parlamentar ao processo
administrativo, garantindo-se-lhe a ampla defesa e o contraditório e após, se o
caso, a aplicação de penalidade, não me parecendo ser razoável, a punição única
de cassação do mandato.
Tal decorre da observância ao
princípio da individualização da pena e da proporcionalidade e razoabilidade,
dentro de uma dosimetria de penalidade, indo desde mera advertência por escrito
e com ampla publicidade, suspensão de até 90 dias e a mais grave: a cassação do
mandato parlamentar.
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* O autor é
Delegado de Polícia aposentado, foi Vereador à Câmara Municipal de Guareí no
período de 1983/1988, Advogado Pós
Graduando em Direito Público.
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